sábado, julho 02, 2005

Que sorte a nossa, hein?


Quem ainda não a conhece, nem imagina o que está perdendo. Vanessa tem em mãos o manual para conquistar o mundo!

Por Lygia Roncel

O palco do CIE Music Hall já é sagrado porque foi sobre ele que vi Bethânia pela última vez, e os raios de luz dessa lembrança ainda me iluminam a vida. Então, num dia típico paulistano, frio de 15 graus lá fora e quase 40º aqui dentro, volto ao mesmo cenário para outro encontro, dessa vez o primeiro (de muitos, espero), com uma menina encantadora do Mato Grosso revelada pelas graças de Maria, a irmã de Caetano, cuja voz batizou duas canções da até então desconhecida compositora. Há quatro anos, sem nem sequer um único disco gravado, dividiu o palco do Canecão com os dois filhos famosos de Dona Canô, no 35º aniversário de carreira da caçula, e cantaram juntos a sua música. Portanto, com esse toque de Midas, não é de se estranhar que Vanessa seja ouro puro.

Também descalça, ela surge da escuridão, saia comprida sempre, cabelos frisados, umbigo à mostra e uma boa forma de fazer marmanjo suspirar. Ali no fundo do tablado, envolta em mistério, desarma-nos com a meiguice de "Vem". "Vem, que eu sei que você tem vontade/ Que eu sei que você tem saudade de mim/ Antes que haja enfermidade/ Que eu não me recupere...". E quem há de resistir a esse chamado? Então lá vamos nós às nuvens... Amor à primeira vista. Ela caminha para a beira, para mais perto de nós e sorri, e esse seu silêncio nos soa como música. Vanessa, por si só, já ilumina o palco. A seguir um jogo de luzes alucinante, a faixa-título do segundo e mais recente disco, Essa Boneca tem Manual e, enquanto ela rodopia e seduz, o quinteto ao fundo mostra a que veio e oferece rock and roll.

Ainda ofegante, diz que estava com saudades e, quando pensamos em duvidar, ela entoa quatro provas de amor assim de uma vez só. Indiscutíveis. "Ainda bem" parece proposital, para derreter o coração e fazê-lo disparar com as fortes batidas da bateria, um assalto aos sentidos. Não contente, ela converte qualquer um ao matrimônio com "Case-se comigo", um pedido impossível de negar feito assim: "Case-se comigo antes que amanheça/ antes que não pareça tão bom pedido/ Antes que eu padeça, case comigo...". Aplaudidíssima. No pensamento dos que nunca pensaram no assunto, sininhos já tilintam a marcha nupcial... A emoção é tanta que alguém na platéia grita "Casa comigo?" e ela, insaciável, responde com "Nossa Canção", com um arranjo ainda mais sedutor, guitarra, sanfona e centenas de vozes cantando junto. Arrepio. Por fim emenda com "Música", em cujos versos iniciais eu já me perco em divagações, e Vanessa, de peito aberto, interpreta cada verso com a convicção de quem já sofreu. Mas agora sorri.

Logo mais vem o hit "Não me deixe só" e muitas vozes ajudam-na a cantar. Então a musa, em seu deleite, faz silêncio e só espia, põe a mão no peito e só agradece. Aplausos ensurdecedores. Ao final, bebe água para então nos saciar com "A Força Que Nunca Seca", o primeiro dos seus sucessos, introduzido por um solo de sanfona e cantado quase à capella. Mais arrepio. Na melancólica "Eu não tenho" ("...vejo nos olhos de Esmeralda/ um dom que sossega a minha tristeza/ Só ela constrói/ Sem ela tudo me dói..."), o sensual toque espanhol que já se nota no disco, mas agora em maior grau porque ela está ali adiante e dança, e brinca, e roda. A próxima é o apogeu, o clímax, um vendaval. "História de uma gata", antes infantil, mas agora na fascinante versão rock'n'roll. A voz felina de Vanessa, os gritos da guitarra, o animado coro sob o palco, tudo é encantador.

A seguir, a igualmente incendiária "Eu sou neguinha", que ela manda parar logo no começo... "Vocês estão ouvindo o barulho? Ou acham que é frescura minha?", ela brinca, enquanto põe a mão sobre o microfone provocando aquele barulhinho incômodo. Microfonia. Mas logo volta ao início, gira, ri, sacode a saia e grita do fundo d'alma o refrão. Um esplendor. Durante "Joãozinho" ela vai até os dois extremos do palco, agradece muito, passeia e vai embora. Acabou? E o bis? Múltiplos protestos e felizmente ela emerge mais uma vez da escuridão, numa versão banquinho e violão e com o inseparável caderno onde coleciona mais de 350 letras. Ao lado, o amigo Swami Jr, anunciado merecidamente como "um dos melhores violonistas do Brasil". Conta que na semana anterior compôs músicas para outras cantoras, mas algumas pegou para si, claro. "Não reparem. Se a dona errar a letra... tudo bem, eu sou a dona mesmo", ri e provoca riso.

A primeiríssima, batizada de "Faça uma loucura por mim", é um páreo duro para as outras das suas pérolas de amor. Uma seqüência de frases cobrando afeto, doloridas como "eu insisto que me queira sim e não talvez, que se entregue..." e "dessa vez você vai me contar simplesmente como eu te faço feliz". Um sopro congelando o espírito. Para continuar a estremecer, outra inédita, "Jardim", que começa assim: "Achei você no meu jardim entristecido/ coração partido/ bichinho arredio...". Quase uma poesia, com versinhos bonitinhos e infestados de sensibilidade e talento ("a dor do coração deixava dura a sua feição, plissada em medo"). Despede-se então do violonista, do banquinho e do caderno, mas não antes de pedir cuidado ao contra-regra: "Meu caderninho, hein, pelo amor de Deus!".

E tem mais! Agora acomodada no chão e com pouquíssima luz, apresenta uma nova e melhor versão de "Tempo Perdido", o clássico do Legião Urbana. O arranjo dramático, que faz chorar a guitarra de Ricardo Prado, funciona bem e finalmente oferece boa melodia (além de boa voz) à ótima letra de Renato. "Então me abraça forte/ e me diz mais uma vez/ que já estamos distante de tudo:/ Temos nosso próprio tempo...". Isso nunca fez tanto sentido... Ainda sentada e no mesmo clima sombrio, canta a antiga "Mágoas de Caboclo", trilha da primeira versão da novela Cabocla (1979), já conhecida nas vozes masculinas de Orlando Silva e Nelson Gonçalves.

Aí se levanta e anuncia que vai embora, o que, para nós, soa como algo inacreditável e inaceitável. Porém, para acabar com as mágoas, ela oferece um analgésico: como no disco, termina com uma versão mais agitada de "Não me deixe só". O canto de cada um de nós somado constrói um grande coral, muitos se levantam e se aglomeram diante dela, que vai à beirada e lhes dá as mãos, deixando os corações definitivamente rendidos. Vanessa consegue ser muito mais do que se espera, muito mais do que seus dois discos prometem. E naquela noite, e nas posteriores também, foi a lembrança da sua voz que embalou meu sonho.

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