quarta-feira, outubro 06, 2010

"A bebedora de sóis"

Mia Couto é um dos mais importantes escritores africanos da atualidade. É autor de mais de quinze livros, dentre eles "Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra" e "Antes de nascer o mundo".

O escritor é amigo da Vanessa e escreveu o release de divulgação de "Bicicletas, Bolos e Outras Alegrias". Coisa fina!Leia aqui:

"Leveza é a palavra. Depois de escutar o novo disco de Vanessa da Mata é essa a palavra que flutua dentro de mim, como eu mesmo, perdido do peso e de outras gravidades, me sinto capaz de sonho e viagem. Entender não é exactamente o que se quer, depois dessa inundação. Acredito, no entanto, que essa leveza surge pelo talento de Vanessa para costurar palavra e som, como se ela soubesse que poesia e música são dois nomes de uma mesma linguagem divina. Esta nova obra de Vanessa é um tapete de fiações diversas, como tecida de vidas foi a sua própria vida. Citando a própria autora, são "palavras que rezam", palavras para serem ditas pelo corpo, canções para se ver versos.

Acertei com Vanessa escrever umas tantas linhas para este disco estava eu, há uma semana, saindo do Brasil para Moçambique. Durante a viagem de regresso, me compenetrei que eu precisava conhecer melhor o trabalho dessa jovem, mas já consagrada compositora e intérprete brasileira. O que eu conhecia, porém, já me levara à aceitação da incumbência, como um adolescente entusiasmo. Eu tinha encontrado a cantora no ano anterior, num restaurante do Rio. Na altura, já me havia apaixonado por canções dela que me tomaram pela cintura e me conduziram a poéticas vagueações.


Nessa noite, jantamos com amigos e ficamos amigos. Vanessa estava preparando-se para um show que decorreria umas poucas horas depois. Pensei no momento: se fosse eu, em véspera de espectáculo, estaria já morrendo de parideiras dores. Mas ela ali estava, completa e serena, como se não houvesse a vizinhança de um caminhar descalça sobre o labaredas. A razão dessa serenidade não seria qualquer coisa que pudéssemos chamar de traquejo profissional. Vanessa cantaria com a mesma naturalidade com que ela estava ali desfiando palavras e tecendo lembranças. Dela me ficou uma indelével impressão de luminosidade, como se nela se confirmassem as palavras da sua própria canção "a manhã chega, chega, chega...".


Em manhã eterna viviam a sua alma, a sua voz. Essa mulher que Maria Bethânia já havia chamado de "palmeira imperial" inspirava em mim o efeito da fronde das palmeiras: um repouso na fronteira entre sombra e Sol.


Disse a Vanessa que este meu breve texto seria apenas a confissão de uma emoção, a impressão de quem não sabe senão do gosto de converter a vida numa infinita escuta. Foi assim que ouvi o novo disco Vanessa. Talvez "ouvir" não seja o verbo certo. É preciso deixar-se tomar por esse embalo de fala e canto, esse balanço que nos faz dançar versos.


Nesta obra nova é difícil vislumbrar um padrão musical definido. As misturas são intencionais, várias e plurais, desde um piscar de olhos à tradição popular brasileira até ao namoro com esta áfrica onde eu faço chão e céu. Mas existe uma constante que se sobrepõe a esta diversidade. A alusão à luminosidade, à lua, ao Sol, é recorrente na maior parte das faixas. E isso confirma toda a minha lembrança: Vanessa vem à tona da luz para respirar. E para nos fazer respirar não armas claridade. Cada canção é uma janela. Que se abre para o lado de dentro do Sol".

Mia Couto,
Maputo, Setembro de 2010

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